Reflexões sobre a frieza diante da perda no ambiente hospitalar
Bip... Bip... Biiii...
O monitor cardíaco parou de bater e mais um bebê se foi nesse plantão. O nome dela era Luana. Eu gosto de gravar os nomes, me sinto mais perto deles e isso faz muita diferença no tratamento. Foi o terceiro bebê que faleceu só hoje. Numa UTI de alto risco, perder bebês acaba se tornando "normal ". Talvez por isso alguns colegas tenham uma certa frieza ao lidar com os pais dos bebês. Mas eu sou bem diferente.
É ruim ver os pais dos bebês indo embora com bolsas azuis ou rosas e sem seus filhos. Mesmo que pra gente não seja a primeira vez, para eles é. Temos que ter mais empatia, nos colocarmos mais no lugar desses pais e tentar melhorar as coisas para eles. Eu não tenho filhos. Eu tenho uma gata, a Princesa. E só de imaginar algo acontecendo com ela já é horrível. Então penso muito nesses pais que acabam tendo suas vozes silenciadas: eles perdem seus filhos, sentem falta do que viveram e do que não puderam viver. Então por que não os ajudarmos mais?
Quando comecei a trabalhar nessa UTI, achei que não ia aguentar. Eu chorava muito. Na verdade, ainda choro as vezes. Eu me importo com esses pequenos! Se eu pudesse salvar a todos, eu salvaria. Infelizmente alguns chegam graves demais e não temos muito o que fazer. Mas o que eu realmente quero dizer com tudo isso, é que certas "pequenas coisas" fazem toda diferença. Por exemplo, deixar a mãe segurar o seu bebê falecido. Ela precisa disso, precisa de mais um tempo com ele! Também podemos lembrar aos pais que seu bebê sabia o quanto era amado! Pode parecer tão pouco no meio desse cenário catastrófico, mas essas pequenas coisas podem ajudar os pais a terem paz.
O ciclo natural se inverteu. O normal seria que os filhos enterrassem seus pais e não o contrário. Então os pais vão se sentir perdidos e sozinhos. Não sei por que eles são deixados de lado. Muitos até se suicidam por conta de tudo. Tantas pessoas falam "Deus quis assim", "logo você terá outro", "vocês são um casal novo", "pelo menos foi agora que ainda era pequeno". Falar que Deus quis assim, é como dizer para alguém religioso que o Deus dele quis a morte de um bebê. Falar que logo terão outro, é mais um absurdo porque as pessoas não são substituíveis. Dizer que o casal é novo também. Quando se fala pelo menos o bebê ainda ainda era pequeno, é outra coisa que não se deve dizer.
O amor não tem a ver com tempo. Se uma mulher perde o marido, ninguém diria para ela que ela é nova e logo arruma outro marido. Não diriam que pelo menos eles estavam a pouco tempo juntos. Ninguém diria isso porque é grosseiro. E ninguém merece ouvir isso. Mas parece que para esses pais, essas coisas são ditas e, infelizmente, muitas pessoas da área da saúde não entendem isso. Um abraço e um ouvido amigo para escutar um pouco do que esses pais guardam dentro de si, ajudaria muito mais do que falar demais.
Conheci uma mãezinha, a Thamires. Ela deixou o marido em casa trabalhando, nem pensava em sua vida. Deixou trabalho, deixou tudo para trás. E ficou todos os dias com o seu filhinho, durante longos meses na UTI. Em nenhum momento saiu do lado dele. No final, ele faleceu. Mas sabe que na verdade era pra ele ter falecido a muito tempo. É até estranho uma enfermeira falar em milagres né? Pois bem, aquele caso foi mesmo um milagre. Ali, um dava força ao outro. Era lindo de ver como ela lutava pelo seu filho, estudava para saber mais e poder ajudá-lo, exigia seus direitos. Mas algumas pessoas da equipe se incomodavam com isso. Só criticavam, omitiam informações e diziam que ela não aceitava o diagnóstico do filho.
Eles não viam o que eu via: que a Thamires era uma mãe lutando pelo seu filho. Que ela sabia da gravidade do caso, mas preferia estar sempre brincando com seu filho e não chorando em cima dele. Ela não via menos um dia com ele e sim mais um dia com ele. Certa vez ela me disse assim: "É muito ruim ter que confiar a vida do meu filho nas mãos de quem eu não confio. Eu sei que ele está grave, mas eu só queria que fizessem o possível por ele e não que o vissem como um leito de UTI que logo estará vago".
Ouvir aquilo partiu meu coração. Porque, muitas vezes, era realmente assim que viam o Manuel. Podiam ter feito mais por ele e por aquela mãezinha também. Ela foi tão corajosa e ouviu gente falando dela. Isso é anti-ético. A chefe de enfermagem reclamando da mãe de um paciente só porque ela fez perguntas sobre os exames. Isso é outra coisa que deve ser mudada. Devemos dividir as informações. Isso acalma os pais, eles tem direito de saber sobre os seus filhos. Não entendo porque algumas pessoas omitem informações e se revoltam quando os pais quererem saber as coisas. Manuel realmente foi um milagre. Ele tinha um olhar doce, estava sempre brincando com sua mãe. Ele nunca chorava, nunca. Parecia saber das coisas. Ele não apenas me fez uma enfermeira melhor, mas ensinou a muitos outros profissionais de saúde a terem um olhar mais humano sobre tudo.
A gente fala muito sobre enfermagem por amor. Amor ao próximo, amor ao cuidado, amor a vida. Então, mesmo que a batalha seja difícil, acredito que sim, que o amor, entre outras coisas, pode mudar tudo. A morte vem e leva esses bebês. Não podemos deixar que levem esses pais também! Por isso, depois de conhecer o Manuel, eu pude ver que podemos sim fazer a diferença, mesmo que minimamente, na vida dessas pessoas. Uma mãe muda seu corpo, sua vida, muda tudo em função de ter um filho. E, quando esse filho falece, tudo desmorona. Quando esses pais se olham no espelho, eles nem se reconhecem mais. E nós, da área da saúde, temos o papel de ajudá-los e não simplesmente mandá-los embora. Antes disso, podemos sim conversar bastante com eles, escutá-los, garantir que estão bem (dentro do possível de "bem").
Se nós não nos esforçarmos para mostrar a esses pais que vale a pena viver, nem que seja só para manter viva a memória de seu filho, ressignificando a dor deles em algo bom, se formos omissos a isso, também teremos uma parcela de culpa quando esses pais desistirem de viver. O luto parental é a maior dor do mundo, sem dúvida alguma. Dizem que é como sentir seu coração parar de bater mesmo ainda tendo batimentos. É sentir-se pequeno numa sala imensa de um hospital. É querer acordar de um pesadelo e perceber que essa é a realidade. É como pular no mar sem saber nadar e sentir a água entrando aos poucos, te sufocando. Mas você ainda está vivo. Tudo dói, não tem explicação. Mas você ainda está vivo. Mesmo que nesse momento, na verdade, você não queria mais estar - você ainda está vivo.
Você que é mãe, pai, avó, avô, enfim, pense em qualquer pessoa que você ame muito. Feche os olhos por um momento e imagine a sua vida sem essa pessoa. O que você sente ao pensar isso? Angústia? Dor? Medo? É ruim só de imaginar não é? Então pense como deve ser perder um filho, sentir saudades da vida que tinha com ele e da vida que vocês ainda teriam juntos. Não podemos deixar a dor desses pais de lado. Não podemos fingir que nada aconteceu, como muitos fazem. Somos da área da saúde e é nosso dever cuidar. É muito fácil dizer o quanto dói quando a dor não sua. É muito fácil silenciar uma voz quando não é você quem quer falar.
O Manuel me ensinou que só o amor é real e a Thamires me mostrou que, muitas vezes, incomodar é estar no caminho certo. A luta dela valeu a pena pois fez melhorias até mesmo no hospital. Outros bebês estão tendo um atendimento melhor por conta de uma mãezinha que bateu o pé pelos direitos do seu filho e fez com que nossos colegas lembrassem o porquê de estarmos aqui. Que lembrassem que um paciente não é apenas um paciente: é o amor de alguém, é a vida de alguém. Que lembrassem que os acompanhantes também precisam de cuidados e que os pais de bebês falecidos são sobreviventes e merecem nosso apoio, admiração e, acima de tudo, nosso respeito.
Alice M. Papillon
Publicado em 22/05/2020